Especial Contos 1: Sol Negro
- João Vitor Vervloet

- 24 de nov. de 2019
- 4 min de leitura
Atualizado: 1 de out. de 2022
Neste episódio especial:
Victor e João Vitor apresentam um novo formato especial para o podcast onde nós narraremos alguns contos autorais. No episódio de hoje temos um conto escrito e narrado por João Vitor.
SOL NEGRO
“Vivemos em um mundo vil, onde cada um dos homens já nasce merecedor do inferno. Ainda assim, certas ofensas à criação são tão abomináveis, que causam repúdio ao próprio diabo.” - Papa João IX sobre os eventos transcorridos na Abadia de St. Howard no ano de 894.

Escuridão... e então luz! A visão se desfaz da turvação oriunda de minhas pupilas indolentes, o sol emergente, repentino desbravador da escuridão que instantes antes abraçava toda a existência, clareia um interminável pomar repleto de laranjeiras... dentre as árvores atarracadas e viçosas, primeiro vejo tecido, branco-transparente, fino e esvoaçante, compondo um vestido quase etéreo, que por sua vez orna à uma figura angelical, de olhos amendoados, tez de cera, pálida, e cabelos encaracolados do dourado mais sincero que creio já ter visto. Aviltantemente bela. Faltam-me palavras, ações ou mesmo pensamentos, apenas contemplo, sinto-me diante de algo sacro e, ao mesmo tempo, aterradoramente profano. Nesse momento, nessa existência, não acredito em medo, receio ou dever... não sinto Deus, e agradeço por isso. Meus olhos permanecem vidrados, seguem cada passo, cada onda nos cabelos, cada movimento do corpo e cada oscilação do vestido... a transparência do tecido volta a me tomar a atenção... Deus, o que significa isso? livrai-me de... ora, o que digo? Ao inferno com o medo! Ao inferno com o receio e com o dever! Eu desejo e, nesse momento, sei que posso, sei que mais ninguém olha. Venço a inércia, volto a raciocinar, retomo o controle de minhas pernas e marcho, marcho em direção ao anjo mesmerizante que trouxe o sol para esse mundo de noite perpétua... estendo a mão, estico os dedos, ela sorri enquanto me aproximo, sinto o tecido do vestido... sinto pele... sinto chama... sinto podridão, dor, medo... ó, meu mundo é medo, horror e penúria... fogo e desolação...
Quando acordei aos gritos pela sexta madrugada seguida, meus irmãos de claustro, despertos no susto, me olharam com menos surpresa, e cada vez mais evidente impaciência. Alguns ainda se mostravam preocupados, outros transpareciam o incômodo que lhes causava minha recém adquirida estranheza. Verdade seja dita, não há tanto espanto quando um jovem monge mostra sinais de fragmentação mental: o claustro e o voto de silêncio sabidamente enlouquecem os mais inexperientes e frágeis, sobretudo diante de uma tragédia. Mas não sou tão jovem, nem tão frágil, este não é meu primeiro claustro e, diferente dos meus irmãos, sei que o que acontece comigo não é tão banal... sei bem a origem de meu comportamento bizarro: há exatamente uma semana fui encarregado de esvaziar os aposentos do abade Francisco (cujo nome não mais devemos dizer após o termos encontrado pendurado pelo pescoço e com os intestinos saltando-lhe da barriga), durante essa tarefa pousei os olhos num livro singular, de páginas de um amarelo febril e letras vermelho-rutilantes, de conteúdo perturbadoramente fascinante. Cujas as palavras, que só vislumbrei por alguns segundos, agora ecoam sussurrantes em cada um de meus sonhos.

Tenho tido o mesmo sonho blasfemo desde então, acordo pedindo piedade ao meu salvador, poucos minutos após conscientemente desprezá-lo e desobedecer a meus votos. Sinto-me vil, sobretudo quando anseio pela próxima noite onírica. Percebo-me cada vez mais demente e, ao mesmo tempo, cada vez mais consciente da sinceridade de minha vontade de abraçar aquela mulher, aquele anjo vicioso... me importo cada vez menos com o oceano infinito de trevas e fogo que se abre toda vez que a toco. Já não me preocupo com a danação, ao contrário, anseio por ela...

Cada vez menos sussurrantes e mais eloquentes, as palavras do livro agora ecoam na minha mente desperta. Sinto-me sonhando acordado, porém mais consciente que nunca. Agora, após pouco mais de uma semana, entendo plenamente o que ele me diz: são instruções, ensinamentos sobre o caminho para casa, o caminho para o meu amor. Entendo agora. Com carvão em mãos desenho os símbolos sobre o mural originalmente ornado com a paixão de nosso senhor Jesus Cristo, cubro as paredes da nave principal do mosteiro, transformo a inócua narrativa bíblica, em algo muito mais transcendente: os verdadeiros deuses emergem em meio ao infinito estrelado da cúpula celeste. Entendo mais e mais à medida que desenho, entendo como eles atravessaram universos de escuridão e vácuo para chegar até mim, entendo como sou especial por ter sido escolhido, eu, antes um mero adorador de um deus falso, fraco e patético, agora sinto-me em meio aos Deuses antigos, sinto-me guiado pelo tentáculo infinito que corta a noite eterna... e ele aponta, aponta para o castiçal, repleto de velas fumegantes. Eu entendo agora... eu nunca devia ter temido o fogo, ele é apenas um farol, um meio de enxergar o caminho através do qual alcançarei meu amor, meu anjo de cachos loiros... As cortinas queimam rapidamente, e tremulam como o vestido dela... os alicerces queimam e eu sinto o odor de laranjas... meus irmão gritam em pânico e dor, e eu sinto a podridão da morte... minha própria carne queima e, enquanto sinto o toque ardente do meu anjo, sinto... sinto medo, sinto dor e desolação infinita. Arrependimento incomensurável... escuridão...
João Vitor






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